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Cultura de massa, literalmente

18/05/2012 / Julio Silveira

A multidão é o novo leitor, o novo editor… e o novo autor
 
No recente Congresso Internacional do Livro Digital, a palestra do historiador francês Roger Chartier foi tanto um alívio quanto um estranhamento. Em meio a discussões sobre planos de negócios e a eterna queda de braço na cadeia do livro (governo, editoras, livrarias), Chartier falou do elemento que, embora seja o mais fundamental na cadeia do livro, é ignorado nas discussões sobre a nova realidade da publicação digital: o autor.
 
Quem, na plateia, se entediou com a falta de estatísticas e o excesso de contexto histórico perdeu uma reflexão que, aparentemente acadêmica, tem aplicações práticas urgentes para quem trabalha com livros.
 
Já em 1996, quando a Amazon mal começava a vender livros — impressos — Chartier advertia sobre os efeitos iminentes do digital sobre a indústria e a economia do livro. Em A aventura do livro, do leitor ao navegador ele antevia a angústia dos grandes grupos editoriais com a exaustão do modelo do best-seller (produtos minimamente diferenciados para a máxima tiragem) frente à fragmentação (de públicos e de poder) oferecida pela publicação digital. Mirando as megaeditoras e falando sobre a livre expressão oferecida pela internet, perguntou “como poderá sobreviver um universal que se expressa através do singular?”.
 
“O sonho […] era que cada um fosse ao mesmo tempo leitor e autor, que emitisse juízos sobre as instituições de seu tempo, quaisquer que elas fossem e que, ao mesmo tempo, pudesse refletir sobre o juízo emitido pelos outros. Aquilo que outrora só era permitido pela comunicação manuscrita ou a circulação de impressos encontra hoje um suporte poderoso com o texto eletrônico.”
 
Chartier não está falando do Facebook (que só estrearia oito anos depois) ou algo assim, está se referindo ao que Kant falou no século 18! Mas os efeitos desse “sonho de interatividade leitor-autor”, concretizado pela internet e pela publicação digital, já tem efeitos visíveis — até financeiramente — no mercado do livro. Um deles é a substituição da crítica especializada pela multidão anônima.
 
Um artigo recente (A Amazon matou o resenhista estrela) mostrou, com base em um estudo de Harvard como a multidão de resenhistas voluntários vem não somente identificando com precisão os bons e maus livros, mas também exercendo forte influência na decisão de compra na Amazon. E um vídeo mostra como uma multidão de leigos dando palpites pode ser muito mais precisa (em determinar a qualidade do produto livro) do que a análise de um especialista. Isso se dá através do fenômeno do Crowd Wisdom, ou sabedoria das massas, e passou da teoria para a prática através dos recursos da internet, que permitem a livre e imediata expressão de opiniões.
 
Talvez chegue o dia em que essa sábia multidão, além de decidir o que se vende, poderá decidir o que é melhor, e a massa sem rosto substituirá, por exemplo, os dezoito acadêmicos suecos que decidem a cada ano o detentor da honraria máxima da literatura, o Prêmio Nobel. Ficção? Esse é o medo expresso por um laureado recente, Mario Vargas Llosa, que acredita que “escrever para tablets” levará à banalização da literatura. Quando todos forem escritores e leitores, quem dirá o que é bom? Ele acha que os textos desvinculados de um suporte físico (e de suas restrições) seguirão o caminho da televisão, que “não chegou a lugar algum, porque aponta ao mais baixo para chegar ao maior número de pessoas”.
 
Em contraponto, há um grupo de escritores, John Grishman entre eles, que prega o “se não pode vencer, junte-se a ele”. Para compensar a voracidade da “literatura para tablets” (se é que isso existe), estão escrevendo em dobro.
 
Em um longo devaneio especulativo, pode-se questionar se a figura do “autor” (o indivíduo cultuado) para o mundo da publicação permanecerá relevante na economia da publicação digital.  Esta especulação pode, no entanto, ser expressa em dólares, quando se vê que, para um gigante como a Amazon, é mais lucrativo vender 10 exemplares de 1.000 títulos diferentes do que 10.000 exemplares de um único título, em se tratando de e-books, produto que não requer estoque e, graças aos selfpublishing, sequer custo de produção. Além do que, 1.000 microautores semianônimos não têm poder de barganha para negociar com a Amazon, ao contrário das grandes editoras e dos autores “estrela”.
 
Voltando a Chartier, temos que “a Cultura impressa — e, antes dela, a cultura manuscrita —, produziu triagens, hierarquias, associações entre formatos, gêneros e leituras. Pode-se supor que, na cultura que lhe será complementar ou concorrente por vários decênios, isto é, a do texto eletrônico, os mesmos processos estarão em funcionamento. Também este outro mundo vai fragmentar-se segundo processos de diferenciação ou divulgação que não andam no mesmo passo e não têm as mesmas formas conforme os diferentes contextos. Uma das dificuldades para pensar esse fenômeno é que o modo como imaginamos o futuro continua sempre dependendo daquilo que conhecemos.”
 
O primeiro entre nós que parar de olhar para o futuro pelo espelho retrovisor, no dizer de McLuhan, encontrará a chave — e o plano de negócios, e o lucro, e o poder — para o mercado da publicação digital. 
 
Julio Silveira é editor, formado em Administração, com extensão em Economia da Cultura. Foi cofundador da Casa da Palavra em 1996, gerente editorial da Agir/Nova Fronteira e publisher da Thomas Nelson. Desde julho de 2011, vem se dedicando à Ímã Editorial, explorando novos modelos de publicação propiciados pelo digital. Tem textos publicados em, entre outros, 10 livros que abalaram meu mundo e Paixão pelos livros (Casa da Palavra), O futuro do livro (Olhares, 2007) e LivroLivre (Ímã). Coordena o fórum Autor 2.0, onde escritores e editores investigam as oportunidades e os riscos da publicação pós-digital.

 

Fonte: coluna LivroLivre - Publishnews